quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Sobre o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo

"O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. (...) Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação.", sugere-nos o filósofo Theodor Adorno, em seu compêndio de aforismos Minima Moralia, de 1945. É nesse caminho de abstração que a escritora moçambicana retornada, Isabela Figueiredo, parece situar sua nova morada reconstituída de reminiscências: Caderno de Memórias Coloniais. Irreservísel como "Buraco de Sal e Sol" - poema de seu blog "Novo Mundo Perfeito", permanece em si um rombo de sua puerícia:
Há a minha infância. “Todos perderam a infância!” E acrescentam, “o passado não interessa, já passou”. Faço-lhes um manguito. ”Não! Eu perdi mesmo a minha infância. Tu podes voltar à aldeia onde nasceste e ouvir tocar os sinos da tua imaginação. Podes rever os tios e as primas velhas, os tijolos rachados de uma antiga parede onde trocaste beijos incipientes, fumaste o primeiro cigarro ou masturbaste um rapaz às escondidas. Podes fazer tudo isso, enquanto eu posso chorar.” O passado está em mim, à minha volta como um filme do Imax. Inatingível, contudo. Imaterial.
Como um recurso último, um artifício contra seu desconsolo, rebusca impetuosamente o antigo perdido e o encontra na escrita mnemônica brutal. E nada parece ter sido escondido. A partir de seu próprio “Mundo Perfeito” - em que monta seu caderno de memórias-posts - Isabela Figueiredo restaura em romance seu Caderno de Memórias Coloniais, onde relata em tom confessional as feridas abertas do passado de sua infância em Moçambique. 
Há ali relato visceral ininterrupto, escrito em primeira pessoa, sem qualquer pudor, que parece atirar a realidade dura à cara do leitor, maculando-o e revelando-lhe os brilhos, recortes cortantes daquele espaço-tempo. Tratando-se de Isabela Figueiredo, o tempo é o da infância e o espaço a Matola, nos subúrbios de Lourenço Marques, onde o pai eletricista e a mãe dona-de-casa habitavam na década de 70.
Em pouco mais de quarenta textos curtos, publicados naquele blog, Isabela convoca imagens fortes e dramáticas por meio de uma linguagem crua; a violência é exposta de forma clara; as conversas são transcritas fielmente; os bois são chamados por nomes. Deste modo, a autora conta sua vivência na África, o racismo do pai, o sentimento de ódio, a descoberta da sexualidade.  Mesmo passível de falhas, a memória demonstra a visão de uma criança no que tange à realidade da época.
É visível a dor em cada linha do texto, no entanto Isabela não para, não desiste de demonstrar suas indignidades e o desejo de uma espécie de ajuste de contas com a África. Filha de colono, protegida, mas bastante atenta ao que se passava, apresenta um retrato da sociedade de Moçambique que desfaz os mitos sobre o nosso colonialismo supostamente tranquilo, isso se comparado ao britânico. O pai que impunha humilhação e medo aos trabalhadores negros durante os pagamentos semanais, transformando “os finais dourados das tardes de sábado num poço escuro de medo e raiva” (FIGUEIREDO, 2010, p. 41).
Sim, é contra ele, o pai, e, possivelmente, para se entender com ele, visto as desavenças de ponto de vista que possuíam, que Isabela escreve. A filha que o traiu, ao regressar a Portugal, por “nunca ter entregado a mensagem de que foi portadora” (FIGUEIREDO, 2010, p. 111). A filha que o traiu, talvez, por amor ou “para que pudéssemos levantar a cabeça” (FIGUEIREDO, 2010, p. 118).
Segundo as considerações de Margarida Calafate Ribeiro, em suas notas sobre o Caderno de Memórias Coloniais, Isabela não deixou de dar testemunho do que acontecia aos brancos, mas também do que foi ocorrendo aos negros ao final do processo de colonização, e isso era suposto permanecer em silêncio, porque “os outros brancos que lá estiveram nunca praticaram o colun..., o colonis..., o colonismo, ou lá o que era” (FIGUEIREDO, 2010, p. 49).  E, talvez, a partir desta obra se possa constituir não só um discurso fundador de uma identidade da segunda geração, mas também restituir uma (im)possível memória da cena um tanto traumática para quem a protagonizou.
A memória de África rapidamente caiu no esquecimento público, ficando assim reservada aos grupos que protagonizaram essa vivência: retornados. Logo o sentimento de abandono, a solidão, a manifestação privada de recordação, o sentimento de não pertença a Portugal e o não direito de pertença ao lugar onde nasceram ou viveram: “Não valia a pena fixar uma imagem. Tudo se extinguiria depressa. Não voltaria a esse lugar, que sendo a minha terra, não me pertencia” ((FIGUEIREDO, 2010, p. 87).
Referente à volta a Portugal, Isabela diz: “habituei-me cedo a ser alvo de troça ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás. Mas o meu sentido de justiça era um Pai-Nosso” (FIGUEIREDO, 2010, p. 119).  E mais:
A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar conosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. (FIGUEIREDO, 2010, p. 123)
E quando menos se espera, Isabela dispara:
Os desterrados, como eu, são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os vínculos legais, não os afetivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa mácula. A mais que provável retaliação. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma mácula impossível de apagar. Persigo oficiais marinheiros que trazem escritas, na manga do casaco, a palavra Moçambique! (FIGUEIREDO, 2010, p. 133)
Conforme o texto de Francisco José Viegas, publicado na edição de dezembro da Ler, por vezes, Isabela Figueiredo parece providenciar socos no estômago, todavia é notável a sua urgência, uma espécie de queda para o abismo que mexe com as feridas, não somente as suas, mas as de todos os retornados que chegaram à metrópole e começaram a viver perto da linha que delimita o nada e o tudo. Sobre os retornados, o autor faz a importante observação:
Eles mudaram Portugal – nunca se lhes reconheceu essa vitória sobre o destino. A esquerda gosta muito da imagem do fim do Império, alinhada em contentores no cais de Alcântara. À força de ser repetida, essa imagem é tão miserável, tão exploradora dos ataques de coração da época. Vir para um país de merda, que proibia as mulheres de fumar nos cafés e de beber cerveja nas esplanadas, mesmo naqueles anos em que o Verão era mais quente. Vir do Índico para um país cheio de Inverno. E, no entanto, eles mudaram Portugal. A província, esse interior onde hoje vive um quarto da população encarregue de três quartos do território, mudou com os retornados. Portugal mudou com essa gente. Ainda não lhes agradecemos como eles mereciam e merecem. O país recebeu, em três meses, cerca de 750 mil portugueses que vieram sem preparação, para dar mais brilho à narrativa da História, heroica e descolonizada. Trinta anos depois, 40 anos depois, quase não há feridas e esses heróis que escaparam como puderam, que atravessaram o deserto e o mar, estão hoje abrigados – porque não desistiram. (http://ler.blogs.sapo.pt/561570.html - último acesso em: 02/09/15)
Por fim, em acordo com Edward W. Said, “não creio que os escritores sejam mecanicamente determinados pela ideologia, (...) estão profundamente ligados à história de suas sociedades, (...) a cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica” (Said, 1995, p. 23). 
Sobre o Caderno, as memória, literatura e nação pode-se pensar que apresentem todos uma grande interdependência, uma relação que reflete e interfere na sociedade e, essa ligação, profunda e indissociável e assim nos prova Isabela Figueiredo.

Referências

ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Tradução de Arthur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001.

FIGUEIREDO, Isabela. Caderno de Memórias Coloniais. Coimbra. Angelus Novus. 2010.

_______. Buraco de Sal e Sol. [Blog] O Novo Mundo Perfeito. Disponível em: http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/search/label/Mo%C3%A7ambique. Acesso em: 10/10/2015.

RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma História de Regressos- Império, Guerra Colonial e Pós-colonialismo. Porto. Afrontamento, 2004.

_______. Notas sobre “Caderno de Memórias Coloniais”. Disponível em: http://www.buala.org/pt/a-ler/notas-sobre-caderno-de-memorias-coloniais. Acesso em: 02/09/15.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo; tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

VIEGAS, Francisco José. “Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo)”. VIEGAS, Francisco José. “Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo)”. Edição de dezembro da LER. Disponível em: http://ler.blogs.sapo.pt/561570.html. Acesso em: 02/09/15.

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