"O
escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. (...) Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação.",
sugere-nos o filósofo Theodor Adorno,
em seu compêndio de aforismos Minima
Moralia, de 1945. É nesse caminho de abstração que a escritora moçambicana
retornada, Isabela Figueiredo, parece situar sua nova morada reconstituída de
reminiscências: Caderno de Memórias
Coloniais. Irreservísel como "Buraco de Sal e Sol" - poema de seu blog "Novo Mundo Perfeito", permanece em si um rombo de
sua puerícia:
Há a minha infância.
“Todos perderam a infância!” E acrescentam, “o passado não interessa, já
passou”.
Faço-lhes um manguito.
”Não! Eu perdi mesmo a minha infância. Tu podes voltar à aldeia onde nasceste e ouvir tocar os sinos da tua imaginação. Podes rever os tios e as primas velhas, os tijolos rachados de uma antiga parede onde trocaste beijos incipientes, fumaste o primeiro cigarro ou masturbaste um rapaz às escondidas. Podes fazer tudo isso, enquanto eu posso chorar.”
O passado está em mim, à minha volta como um filme do Imax. Inatingível, contudo. Imaterial.
Como um recurso último, um artifício contra seu desconsolo, rebusca
impetuosamente o antigo perdido e o encontra na escrita mnemônica brutal. E
nada parece ter sido escondido. A partir de seu próprio “Mundo Perfeito” - em
que monta seu caderno de memórias-posts
- Isabela Figueiredo restaura em romance seu Caderno de Memórias Coloniais, onde relata em tom confessional as feridas
abertas do passado de sua infância em Moçambique.
Há ali relato visceral ininterrupto,
escrito em primeira pessoa, sem qualquer pudor, que parece atirar a realidade
dura à cara do leitor, maculando-o e revelando-lhe os brilhos, recortes
cortantes daquele espaço-tempo. Tratando-se de Isabela Figueiredo, o tempo é o
da infância e o espaço a Matola, nos subúrbios de Lourenço Marques, onde o pai
eletricista e a mãe dona-de-casa habitavam na década de 70.
Em pouco mais de quarenta textos curtos,
publicados naquele blog, Isabela convoca
imagens fortes e dramáticas por meio de uma linguagem crua; a violência é
exposta de forma clara; as conversas são transcritas fielmente; os bois são
chamados por nomes. Deste modo, a autora conta sua vivência na África, o
racismo do pai, o sentimento de ódio, a descoberta da sexualidade. Mesmo passível de falhas, a memória demonstra
a visão de uma criança no que tange à realidade da época.
É visível a
dor em cada linha do texto, no entanto Isabela não para, não desiste de
demonstrar suas indignidades e o desejo de uma espécie de ajuste de contas com
a África. Filha de colono, protegida, mas bastante atenta ao que se passava, apresenta
um retrato da sociedade de Moçambique que desfaz os mitos sobre o nosso
colonialismo supostamente tranquilo, isso se comparado ao britânico. O pai que impunha
humilhação e medo aos trabalhadores negros durante os pagamentos semanais,
transformando “os finais dourados das tardes de sábado num poço
escuro de medo e raiva” (FIGUEIREDO, 2010, p. 41).
Sim, é contra ele, o pai, e, possivelmente, para se
entender com ele, visto as desavenças de ponto de vista que possuíam, que Isabela
escreve. A filha que o traiu, ao regressar a Portugal, por “nunca ter entregado
a mensagem de que foi portadora” (FIGUEIREDO, 2010, p. 111). A filha que o
traiu, talvez, por amor ou “para que pudéssemos levantar a cabeça” (FIGUEIREDO,
2010, p. 118).
Segundo as considerações de Margarida Calafate
Ribeiro, em suas notas sobre o Caderno de
Memórias Coloniais, Isabela não deixou de dar testemunho do que acontecia
aos brancos, mas também do que foi ocorrendo aos negros ao final do processo de
colonização, e isso era suposto permanecer em silêncio, porque “os outros
brancos que lá estiveram nunca praticaram o colun..., o colonis..., o
colonismo, ou lá o que era” (FIGUEIREDO, 2010, p. 49). E, talvez, a partir desta
obra se possa constituir não só um discurso fundador de uma identidade da
segunda geração, mas também restituir uma (im)possível memória da cena um tanto
traumática para quem a protagonizou.
A memória de África rapidamente caiu no
esquecimento público, ficando assim reservada aos grupos que protagonizaram
essa vivência: retornados. Logo o sentimento de abandono, a solidão, a
manifestação privada de recordação, o sentimento de não pertença a Portugal e o
não direito de pertença ao lugar onde nasceram ou viveram: “Não valia a pena
fixar uma imagem. Tudo se extinguiria depressa. Não voltaria a esse lugar, que
sendo a minha terra, não me pertencia” ((FIGUEIREDO, 2010, p. 87).
Referente à volta a Portugal, Isabela diz: “habituei-me
cedo a ser alvo de troça ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de
vermelho ou lilás. Mas o meu sentido de justiça era um Pai-Nosso” (FIGUEIREDO,
2010, p. 119). E mais:
A metrópole era
suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de
ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de
cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e
excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar conosco,
atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia
pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os
preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que
nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os
pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos
nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava.
(FIGUEIREDO, 2010, p. 123)
E
quando menos se espera, Isabela dispara:
Os desterrados,
como eu, são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com
ele cortaram os vínculos legais, não os afetivos. São indesejados nas terras
onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci
seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa mácula. A mais que
provável retaliação. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma mácula
impossível de apagar. Persigo oficiais marinheiros que trazem escritas, na
manga do casaco, a palavra Moçambique! (FIGUEIREDO, 2010, p. 133)
Conforme o texto de Francisco José Viegas, publicado na
edição de dezembro da Ler, por vezes, Isabela Figueiredo parece
providenciar socos no estômago, todavia é notável a sua urgência, uma espécie
de queda para o abismo que mexe com as feridas, não somente as suas, mas as de
todos os retornados que chegaram à metrópole e começaram a viver perto da linha
que delimita o nada e o tudo. Sobre os retornados, o autor faz a importante
observação:
Eles mudaram
Portugal – nunca se lhes reconheceu essa vitória sobre o destino. A esquerda
gosta muito da imagem do fim do Império, alinhada em contentores no cais de
Alcântara. À força de ser repetida, essa imagem é tão miserável, tão
exploradora dos ataques de coração da época. Vir para um país de merda, que
proibia as mulheres de fumar nos cafés e de beber cerveja nas esplanadas, mesmo
naqueles anos em que o Verão era mais quente. Vir do Índico para um país cheio
de Inverno. E, no entanto, eles mudaram Portugal. A província, esse interior
onde hoje vive um quarto da população encarregue de três quartos do território,
mudou com os retornados. Portugal mudou com essa gente. Ainda não lhes
agradecemos como eles mereciam e merecem. O país recebeu, em três meses, cerca
de 750 mil portugueses que vieram sem preparação, para dar mais brilho à
narrativa da História, heroica e descolonizada. Trinta anos depois, 40 anos
depois, quase não há feridas e esses heróis que escaparam como puderam, que
atravessaram o deserto e o mar, estão hoje abrigados – porque não desistiram. (http://ler.blogs.sapo.pt/561570.html
- último acesso em: 02/09/15)
Por fim, em acordo
com Edward W. Said, “não creio que os escritores sejam mecanicamente
determinados pela ideologia, (...) estão profundamente ligados à história de
suas sociedades, (...) a cultura e suas formas estéticas derivam da experiência
histórica” (Said, 1995, p. 23).
Sobre o Caderno, as memória, literatura
e nação pode-se pensar que apresentem todos uma grande interdependência, uma
relação que reflete e interfere na sociedade e, essa ligação, profunda e
indissociável e assim nos prova Isabela Figueiredo.
Referências
ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Tradução de Arthur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001.
FIGUEIREDO, Isabela. Caderno de Memórias Coloniais. Coimbra. Angelus Novus. 2010.
_______. Buraco de Sal e Sol. [Blog] O Novo Mundo Perfeito. Disponível em: http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/search/label/Mo%C3%A7ambique. Acesso em: 10/10/2015.
RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma História de Regressos- Império, Guerra Colonial e Pós-colonialismo. Porto. Afrontamento, 2004.
_______. Notas sobre “Caderno de Memórias Coloniais”. Disponível em: http://www.buala.org/pt/a-ler/notas-sobre-caderno-de-memorias-coloniais. Acesso em: 02/09/15.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo; tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VIEGAS, Francisco José. “Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo)”. VIEGAS, Francisco José. “Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo)”. Edição de dezembro da LER. Disponível em: http://ler.blogs.sapo.pt/561570.html. Acesso em: 02/09/15.
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