O caminho que escolhemos percorrer,
neste texto, nos serve de estratégia teórica para lermos, futuramente, a obra
de Isabela Figueiredo, "Caderno de Memórias Coloniais", de 2010. Ficam-nos
evidentes, já em princípio, algumas questões relacionadas à identidade, memória
e o caso de retornados de Moçambique. Explicamos melhor: a autora é
moçambicana, filha de colonos portugueses que, como outros tantos, foram a
Moçambique, em meados do século passado, para tentar uma vida melhor e foram
obrigados a retornar a Portugal, em 1975. Seu livro, uma "autobiografia
ficcionada" segundo Isabela, está formatado como em fragmentos memoriais
do seu tempo naquela terra.
Sobre a identidade no contemporâneo
Para entendermos melhor de que se
trata, quando se fala em identidade nessa contemporaneidade, trazemos as
propostas de descentramento do sujeito de Stuart Hall, em "A identidade
cultural na pós-modernidade". Há, para Hall, cinco descentramentos
importantes que contribuem para a fragmentação do sujeito contemporâneo. O
primeiro está nas releituras marxistas da década de 60 que veem o homem como
subordinado às condições históricas e, portanto, tendo suas ações limitadas
pelos recursos materiais e culturais que recebeu das gerações anteriores. O
segundo está no vislumbramento freudiano do inconsciente e sua leitura
linguística por Lacan. A identidade, sob essa luz,
é realmente algo formado ao longo do
tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato (...). Existe
sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade (...). Assim,
em vez de falar da identidade como coisa acabada, deveríamos falar de identificação. (HALL, 1997, p. 38-39).
O advento de noção da língua como sistema sócial, conforme
proposto por Saussure, figura como terceiro descentramento, e Hall percebe a
analogia entre língua e identidade, no sentido de que "eu sei quem “eu”
sou em relação com o “outro” (por exemplo, minha mãe) que não posso ser”. Como
diria Lacan, a identidade, como o inconsciente,
está estruturada como língua. (...)
O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a
identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente
escapulindo de nós (HALL, 1997, p. 41).
No quarto descentramento, Hall nos
fala da genealogia do sujeito moderno, proposta por Foucault, que admite um
novo tipo de poder de regulação e vigilância sobre ele através do "poder
disciplinar" imposto pelas instituições modernas como as escolares,
midiáticas, políticas e jurídicas. E o quinto descentramento, o qual
sublinhamos com especial interesse, é o provocado pelo papel do Feminismo e de
como ele implica no reconhecimento de que “o pessoal é político" (HALL,
1997, p. 45).
Para além disso, quando pensamos em
identidade nacional, precisamos compreender, ainda segundo Hall, a cultura
nacional como uma “comunidade imaginada”, formada, fundamentalmente, a partir
de “memórias do passado, desejo por viver em conjunto e perpetuação da herança”
(HALL, 1997, p. 58). Ou seja, “a maioria das nações consiste de culturas
separadas, unificadas por um longo processo de conquista violenta — isto é,
pela supressão forçada da diferença cultural”. E, “as nações são sempre
compostas de diferentes classes socais e diferentes grupos étnicos e de
gênero”, ademais, “as nações ocidentais modernas foram também os centros de
impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia
cultural sobre as culturas dos colonizados” (HALL, 1997, p. 62).
A ascensão da memória como valor histórico
Outra
consideração pertinente a esse tempo é a ascensão da memória como “uma das
preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”, como
nos diz Andreas Huyssen, em “Passados presentes: mídia, política, amnésia”, capítulo
do livro Seduzidos pela memória:
arquiteturas, monumentos, mídia, de 2000. Em contraposição à hegemonia dos
“futuros presentes”, no início do século XX, os “passados presentes” estão,
desde a década de 1980, em foco. Para Huyssen, “os discursos de memória de
um novo tipo emergiram pela primeira vez no ocidente depois da década de 1960,
no rastro da descolonização e dos novos movimentos sociais em sua busca por
histórias alternativas e revisionistas”. (HUYSSEN, 2000, p.10).
O
autor ressalta que esses discursos, apesar de aparecerem globalmente, guardam
identificações específicas às nações de quem os emite, na medida em que há com
eles o seu lugar político. E reforça que
o
enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos ancorar
em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo
faturamento do espaço vivido (HUYSSEN, 2000, p. 20).
O afloramento da memória na cultura
contemporânea e seu impacto na promoção de sujeitos historicamente apagados da
história oficial é uma das questões de que se ocupa Beatriz Sarlo em “Tempo passado: cultura da memória
e guinada subjetiva”. A autora narra os usos da memória nos diversos espaços
sociais e o sucesso de obras não ficcionais no mercado editorial. O ponto
positivo que percebe está na relevância das mulheres nesse contexto:
Como
se trata da vida cotidiana, as mulheres (especialistas nessa dimensão do
privado e do público) ocupam uma parcela relevante do quadro. Esses sujeitos
marginais, que teriam sido relativamente ignorados em outros modos de narração
do passado, demandam novas exigências de método e tendem à escuta sistemática
dos “discursos de memória”: diários, cartas, conselhos e orações (SARLO, 2007, p.17).
Sarlo
nos dirá, porém, que “(...) não se deve basear na memória uma epistemologia
ingênua” e que, “(...) não há equivalência entre o direito de lembrar e a
afirmação de uma verdade da lembrança” (SARLO, 2007, p. 44). E aqui nos lembra
daqueles contínuos processos psicanalíticos de identificação, em constante
evolução, referidos por Hall. A autora nos fala, também, da relação entre o
testemunho e a experiência e do papel da narração:
Não
há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a
linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou
de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é no comum (SARLO,
2007, p.25).
O caso dos retornados de Moçambique
Outro aspecto que nos importa nesse
trajeto para a leitura de Isabela Figueiredo é conhecer o caso específico dos
retornados de Moçambique que, como Isabela, deixaram a terra onde nasceram ou
moravam por imposição política. Para tanto, tomamos o trabalho das
pesquisadoras Claudia Sofia Pinto e Susana Faria, “Retornados: Identidade de Um
Grupo (In)Conformado” (1996), que empreenderam uma exaustiva pesquisa e coleta
de testemunhos de retornados angolanos e moçambicanos, tanto de primeira geração
quanto de segunda geração (filhos de portugueses nascidos em Moçambique).
Sobre o caso específico de
Moçambique, Pinto e Faria nos descrevem uma realidade de Moçambique como lugar
sob forte influência inglesa, em função da divisa com a África do Sul e, por
isso, em parte, há grande distinção entre os discursos dos retornados de
Angola. Desde o princípio das imigrações, a ida a Moçambique já figurava como
uma viagem ao desconhecido e “o início de uma nova etapa” (PINTO & FARIA,
p.68).
Ainda que houvesse, em seguida,
dificuldades de adaptação, é bastante coincidente o relato de que a chegada à
África causara encantamento:
Para além da riqueza natural,
Moçambique é descrito como um país onde a ascensão econômica e social eram
facilmente alcançadas. Para além da ascensão econômica, também é referido a
proximidade existente entre as diferentes classes sociais. Na verdade, viviam
numa sociedade onde a mobilidade social ascendente era notória (PINTO &
FARIA, 1996, p. 71).
É importante notar que essa
convivência se dava mais comercialmente do que socialmente e que, sobretudo, os
grupos mantiveram suas próprias culturas e hábitos. Contudo, é recorrente o
relato de saudade daquela terra, que tiveram de deixar às pressas, sem tempo
para despedida. É, igualmente, daquele lugar que muitos trazem a lembrança de
terem vivido seus melhores anos e
para o qual carregam a esperança de voltar. Por outro lado, os testemunhos dão
conta que:
A relação entre os colonos
portugueses e os negros é uma relação complexa e muitas vezes difícil de
perceber o verdadeiro sentimento que norteia a interação entre brancos e
negros. Se por um lado todos referem o bom convívio e as grandes amizades
estabelecidas com a população negra, por outro lado aceitam viver debaixo de um
sistema racista onde a cor da pele faz a
diferença (PINTO & FARIA, 1996, p. 76).
O retorno propriamente aparece-lhes
como o grande trauma. Um pouco porque a distância geográfica de Portugal havia
lhes afastado em sentimento pátrio, sustentado, assim, de longe, pelo respeito
ao hino e à bandeira. Quando voltam, esses retornados experimentam “a revolta e
a recriminação contra Portugal no que diz respeito a sua responsabilidade nos
melindrosos processos de descolonização e de integração” (PINTO & FARIA,
1996, p. 79). Muitos deles enfrentaram, a partir daí, dificuldades que não
conheciam na terra colonizada, agora independente. A chegada à terra portuguesa
também não foi acolhedora:
A
sua chegada em massa e a necessidade de se acomodarem em Portugal, gerou por
parte dos residentes uma espécie de aversão à qual não podiam ser alheios. Para
além de sofrerem o estigma de retornados, esta população debatia-se com a sua
meia-idade e com uma família a seu encargo que dificultava sua readaptação à
sociedade portuguesa (PINTO & FARIA, 1996, p.83).
Toda adversidade, no entanto, não
põem esses retornados em estados de desolação ou subalternidade. Eles têm, ao
invés disso, um orgulho de seus espíritos diligentes sem os quais não seriam a
história de Portugal.
Referências
HALL, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
HUYSSEN,
Andreas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: HUYSSEN, Andreas.
Seduzidos pela memória: arquiteturas, monumentos, mídia. Rio, Aeroplano, 2000.
SARLO,
B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia
das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
PINTO,
Claudia Sofia e FARIA, Susana. “Retornados: Identidades de Um Grupo (In) Conformado”.
Seminário de Investigação em Sociologia da Cultura. 1996. Disponível em:https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/196/1/Retornados%20%20identidades%20de%20um%20grupo%20(in)conformado.pdf.
Acesso em: 19/05/15.
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