quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Identidade, Memória e Retorno: pensamentos, questões e o caso de Moçambique

O caminho que escolhemos percorrer, neste texto, nos serve de estratégia teórica para lermos, futuramente, a obra de Isabela Figueiredo, "Caderno de Memórias Coloniais", de 2010. Ficam-nos evidentes, já em princípio, algumas questões relacionadas à identidade, memória e o caso de retornados de Moçambique. Explicamos melhor: a autora é moçambicana, filha de colonos portugueses que, como outros tantos, foram a Moçambique, em meados do século passado, para tentar uma vida melhor e foram obrigados a retornar a Portugal, em 1975. Seu livro, uma "autobiografia ficcionada" segundo Isabela, está formatado como em fragmentos memoriais do seu tempo naquela terra.

Sobre a identidade no contemporâneo

Para entendermos melhor de que se trata, quando se fala em identidade nessa contemporaneidade, trazemos as propostas de descentramento do sujeito de Stuart Hall, em "A identidade cultural na pós-modernidade". Há, para Hall, cinco descentramentos importantes que contribuem para a fragmentação do sujeito contemporâneo. O primeiro está nas releituras marxistas da década de 60 que veem o homem como subordinado às condições históricas e, portanto, tendo suas ações limitadas pelos recursos materiais e culturais que recebeu das gerações anteriores. O segundo está no vislumbramento freudiano do inconsciente e sua leitura linguística por Lacan. A identidade, sob essa luz,

é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato (...). Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade (...). Assim, em vez de falar da identidade como coisa acabada, deveríamos falar de identificação. (HALL, 1997, p. 38-39).

O advento de noção da língua como sistema sócial, conforme proposto por Saussure, figura como terceiro descentramento, e Hall percebe a analogia entre língua e identidade, no sentido de que "eu sei quem “eu” sou em relação com o “outro” (por exemplo, minha mãe) que não posso ser”. Como diria Lacan, a identidade, como o inconsciente,

está estruturada como língua. (...) O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós (HALL, 1997, p. 41).


No quarto descentramento, Hall nos fala da genealogia do sujeito moderno, proposta por Foucault, que admite um novo tipo de poder de regulação e vigilância sobre ele através do "poder disciplinar" imposto pelas instituições modernas como as escolares, midiáticas, políticas e jurídicas. E o quinto descentramento, o qual sublinhamos com especial interesse, é o provocado pelo papel do Feminismo e de como ele implica no reconhecimento de que “o pessoal é político" (HALL, 1997, p. 45).
Para além disso, quando pensamos em identidade nacional, precisamos compreender, ainda segundo Hall, a cultura nacional como uma “comunidade imaginada”, formada, fundamentalmente, a partir de “memórias do passado, desejo por viver em conjunto e perpetuação da herança” (HALL, 1997, p. 58). Ou seja, “a maioria das nações consiste de culturas separadas, unificadas por um longo processo de conquista violenta — isto é, pela supressão forçada da diferença cultural”. E, “as nações são sempre compostas de diferentes classes socais e diferentes grupos étnicos e de gênero”, ademais, “as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados” (HALL, 1997, p. 62).

A ascensão da memória como valor histórico

Outra consideração pertinente a esse tempo é a ascensão da memória como “uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”, como nos diz Andreas Huyssen, em “Passados presentes: mí­dia, polí­tica, amnésia”, capítulo do livro Seduzidos pela memória: arquiteturas, monumentos, mídia, de 2000. Em contraposição à hegemonia dos “futuros presentes”, no início do século XX, os “passados presentes” estão, desde a década de 1980, em foco. Para Huyssen, “os discursos de memória de um novo tipo emergiram pela primeira vez no ocidente depois da década de 1960, no rastro da descolonização e dos novos movimentos sociais em sua busca por histórias alternativas e revisionistas”. (HUYSSEN, 2000, p.10).
O autor ressalta que esses discursos, apesar de aparecerem globalmente, guardam identificações específicas às nações de quem os emite, na medida em que há com eles o seu lugar político. E reforça que

o enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo faturamento do espaço vivido (HUYSSEN, 2000, p. 20).


O afloramento da memória na cultura contemporânea e seu impacto na promoção de sujeitos historicamente apagados da história oficial é uma das questões de que se ocupa Beatriz Sarlo em “Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva”. A autora narra os usos da memória nos diversos espaços sociais e o sucesso de obras não ficcionais no mercado editorial. O ponto positivo que percebe está na relevância das mulheres nesse contexto:

Como se trata da vida cotidiana, as mulheres (especialistas nessa dimensão do privado e do público) ocupam uma parcela relevante do quadro. Esses sujeitos marginais, que teriam sido relativamente ignorados em outros modos de narração do passado, demandam novas exigências de método e tendem à escuta sistemática dos “discursos de memória”: diários, cartas, conselhos e orações (SARLO, 2007, p.17).

Sarlo nos dirá, porém, que “(...) não se deve basear na memória uma epistemologia ingênua” e que, “(...) não há equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de uma verdade da lembrança” (SARLO, 2007, p. 44). E aqui nos lembra daqueles contínuos processos psicanalíticos de identificação, em constante evolução, referidos por Hall. A autora nos fala, também, da relação entre o testemunho e a experiência e do papel da narração:

Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é no comum (SARLO, 2007, p.25).

O caso dos retornados de Moçambique

Outro aspecto que nos importa nesse trajeto para a leitura de Isabela Figueiredo é conhecer o caso específico dos retornados de Moçambique que, como Isabela, deixaram a terra onde nasceram ou moravam por imposição política. Para tanto, tomamos o trabalho das pesquisadoras Claudia Sofia Pinto e Susana Faria, “Retornados: Identidade de Um Grupo (In)Conformado” (1996), que empreenderam uma exaustiva pesquisa e coleta de testemunhos de retornados angolanos e moçambicanos, tanto de primeira geração quanto de segunda geração (filhos de portugueses nascidos em Moçambique).
Sobre o caso específico de Moçambique, Pinto e Faria nos descrevem uma realidade de Moçambique como lugar sob forte influência inglesa, em função da divisa com a África do Sul e, por isso, em parte, há grande distinção entre os discursos dos retornados de Angola. Desde o princípio das imigrações, a ida a Moçambique já figurava como uma viagem ao desconhecido e “o início de uma nova etapa” (PINTO & FARIA, p.68).
Ainda que houvesse, em seguida, dificuldades de adaptação, é bastante coincidente o relato de que a chegada à África causara encantamento:

Para além da riqueza natural, Moçambique é descrito como um país onde a ascensão econômica e social eram facilmente alcançadas. Para além da ascensão econômica, também é referido a proximidade existente entre as diferentes classes sociais. Na verdade, viviam numa sociedade onde a mobilidade social ascendente era notória (PINTO & FARIA, 1996, p. 71).

É importante notar que essa convivência se dava mais comercialmente do que socialmente e que, sobretudo, os grupos mantiveram suas próprias culturas e hábitos. Contudo, é recorrente o relato de saudade daquela terra, que tiveram de deixar às pressas, sem tempo para despedida. É, igualmente, daquele lugar que muitos trazem a lembrança de terem vivido seus melhores anos e para o qual carregam a esperança de voltar. Por outro lado, os testemunhos dão conta que:

A relação entre os colonos portugueses e os negros é uma relação complexa e muitas vezes difícil de perceber o verdadeiro sentimento que norteia a interação entre brancos e negros. Se por um lado todos referem o bom convívio e as grandes amizades estabelecidas com a população negra, por outro lado aceitam viver debaixo de um sistema racista onde  a cor da pele faz a diferença (PINTO & FARIA, 1996, p. 76).

O retorno propriamente aparece-lhes como o grande trauma. Um pouco porque a distância geográfica de Portugal havia lhes afastado em sentimento pátrio, sustentado, assim, de longe, pelo respeito ao hino e à bandeira. Quando voltam, esses retornados experimentam “a revolta e a recriminação contra Portugal no que diz respeito a sua responsabilidade nos melindrosos processos de descolonização e de integração” (PINTO & FARIA, 1996, p. 79). Muitos deles enfrentaram, a partir daí, dificuldades que não conheciam na terra colonizada, agora independente. A chegada à terra portuguesa também não foi acolhedora:

A sua chegada em massa e a necessidade de se acomodarem em Portugal, gerou por parte dos residentes uma espécie de aversão à qual não podiam ser alheios. Para além de sofrerem o estigma de retornados, esta população debatia-se com a sua meia-idade e com uma família a seu encargo que dificultava sua readaptação à sociedade portuguesa (PINTO & FARIA, 1996, p.83).

Toda adversidade, no entanto, não põem esses retornados em estados de desolação ou subalternidade. Eles têm, ao invés disso, um orgulho de seus espíritos diligentes sem os quais não seriam a história de Portugal.


Referências

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: mí­dia, polí­tica, amnésia. In: HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquiteturas, monumentos, mídia. Rio, Aeroplano, 2000.

SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

PINTO, Claudia Sofia e FARIA, Susana. “Retornados: Identidades de Um Grupo (In) Conformado”. Seminário de Investigação em Sociologia da Cultura. 1996. Disponível em:https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/196/1/Retornados%20%20identidades%20de%20um%20grupo%20(in)conformado.pdf. Acesso em: 19/05/15.








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